Em 2018, eleição da extrema direita não foi exceção à história do Brasil e eventual vitória contra Bolsonaro não implica retorno à normalidade. Entrevista especial com Bernardo Ricupero

Para o pesquisador, nosso otimismo e desejo de acreditar que o Brasil rumava para um caminho de consolidação dos direitos sociais e democráticos colidiu com a eleição de Bolsonaro e nos mostrou que estávamos enganados

Por: Ricardo Machado, em IHU

A vitória do atual presidente nas eleições de 2018 foi um marco negativo na história do Brasil desde a redemocratização, uma ruptura, um retorno ao passado cujo retrocesso teve início durante o processo de impeachment em 2016. “A mais infame manifestação dessa nova postura apareceu quando o então deputado do baixo clero Bolsonaro, na sessão da Câmara que iniciou o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, reivindicou a memória de um torturador, o ‘coronel Brilhante Ustra, pavor de Dilma Rousseff’. Mais sério, Bolsonaro foi eleito presidente dois anos depois. Não se pode esquecer que a ditatura, apesar do apoio popular com o qual contou, foi o produto de um golpe”, relembra Bernardo Ricupero em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Quando observamos o fenômeno antipolítico mais amplamente, percebemos que ele é mais complexo do que parecia à primeira vista. “Ela [a antipolítica] pode assumir tons de direita, como foram as campanhas do Brexit, em 2016, na Inglaterra, e a de Trump, também em 2016, nos Estados Unidos”, explica o entrevistado. “Mas possivelmente tem uma coloração à esquerda, como foi a criação, em 2014, do Podemos, na Espanha, a partir do Movimento dos Indignados, e o Occupy Wall Street, que teve ressonâncias nas duas candidaturas presidenciais de Bernie Sanders. E a ‘antipolítica’ pode até se apresentar como ‘pós-ideológica’, como ocorreu com o Movimento 5 Estrelas na Itália, que venceu as eleições legislativas de 2018”, complementa.

Todo esse contexto ganha outros contornos quando observamos a realidade brasileira e consideramos, dentre tantas, duas coisas:

1) a aprovação da PEC Kamikaze que destinará R$ 41 bilhões a projetos políticos claramente eleitoreiros e que encerram ao final de 2022;

2) uma eventual vitória de Lula não implicará um retorno à normalidade democrática.

“A decretação do Estado de Emergência é uma espécie de confissão da ilegalidade que está por trás dessa iniciativa, realizada em pleno período eleitoral. Por outro lado, derrubar a PEC iria de encontro à narrativa de Bolsonaro a respeito da perseguição que sofreria por parte do establishment, além de se tratar de uma medida com amplo apelo popular”, pontua Bernardo Ricupero. “A vitória de Lula – não vejo possibilidade de Terceira Via – não representaria o retorno à suposta normalidade que vigorou a partir da redemocratização. Nesse período, uma espécie de ‘otimismo ingênuo’ nos convenceu que tínhamos uma democracia política consolidada e que caminhávamos, mesmo que aos trancos e barrancos, para mais igualdade social”, acrescenta.

“A vitória de Bolsonaro, em 2018, foi uma surpresa, mas o que ela expressa não é a exceção, mas a linha dominante da nossa história. Um país que foi colônia e, como tal, estava voltado para necessidades estranhas à maior parte da sua população que, não por acaso, veio para aqui forçada, como escravos. Mas preferimos não os ver, acreditando que o país rumava para outro caminho. A eleição de Bolsonaro mostrou a que ponto estávamos enganados”, assevera.

Bernardo Ricupero possui graduação em Ciências Sociais, mestrado e doutorado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo – USP, tendo realizado pós-doutorado pelo Colégio do México. É professor doutor da USP e trabalha com ênfase em História do Pensamento Político, atuando principalmente em temas como pensamento político brasileiro, pensamento político latino-americano, marxismo, nacionalismo e romantismo.

Confira entrevista.

IHU – Quais são os elementos da campanha presidencial de 2018 que nos fazem pensar em uma ruptura política na Nova República? Que limites democráticos foram atravessados no pleito de quatro anos atrás?

Bernardo Ricupero – As eleições presidenciais de 2018 podem ser consideradas como uma ruptura com a Nova República devido ao seu resultado: a vitória de um candidato que rejeitou o caminho trilhado pelo Brasil desde 1985, com a redemocratização. De maneira complementar, Bolsonaro também reivindicou o que seria o legado de 1964. É significativo que, durante um período largo, mais de vinte anos, praticamente não houvesse quem defendesse no país nossa última ditadura. Ela pode não ter terminado com uma derrota militar, como ocorreu na Argentina com a Guerra das Malvinas, mas acabou de maneira melancólica, em meio à hiperinflação, caso Riocentro, inúmeros escândalos de corrupção etc., que marcaram o governo Figueiredo, presidente que sintomaticamente, na sua última entrevista, desejou que o povo o esquecesse.

No entanto, a distância histórica, a incompletude da Justiça de Transição no Brasil, o fato que o país foi governado por quatorze anos por um partido, o Partido dos Trabalhadores (PT), que se reivindica como de esquerda, entre outros fatores, abriu caminho para o que parecia, até pouco antes, impensável: o elogio da ditadura civil-militar. A mais infame manifestação dessa nova postura apareceu quando o então deputado do baixo clero Bolsonaro, na sessão da Câmara que iniciou, em 2016, o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, reivindicou a memória de um torturador, o “coronel Brilhante Ustra, pavor de Dilma Rousseff”. Mais sério, Bolsonaro foi eleito presidente dois anos depois. Não se pode esquecer que a ditatura, apesar do apoio popular com o qual contou, foi o produto de um golpe.

IHU – Bolsonaro se elegeu com um discurso antiestablishment e contra o que chamava de “velha política”, significantes que condensavam seu “projeto de país”. Entretanto, a antipolítica é bem mais diversificada. Como esses diversos mecanismos antipolíticos operam hoje no Brasil?

Bernardo Ricupero – Diria que, mais do que no Brasil, o que tem sido chamado de antipolítica tem tido variadas manifestações pelo mundo. Ela pode assumir tons de direita, como foram as campanhas do Brexit, em 2016, na Inglaterra, e a de Trump, também em 2016, nos Estados Unidos. Mas possivelmente tem uma coloração à esquerda, como foi a criação, em 2014, do Podemos, na Espanha, a partir do Movimento dos Indignados, e o Occupy Wall Street, que teve ressonâncias nas duas candidaturas presidenciais de Bernie Sanders. E a “antipolítica” pode até se apresentar como “pós-ideológica”, como ocorreu com o Movimento 5 Estrelas na Itália, que venceu as eleições legislativas de 2018.

O discurso de Bolsonaro tem, como você aponta, claramente pontos de contato com a “antipolítica”: a pregação antiestablishment e contra o que chamou de “velha política”. Além disso, na campanha de 2018, confluiu com outra manifestação antipolítica, o “lavajatismo”, que tem afinidades com uma certa tradição brasileira, com apelo especialmente forte entre as camadas médias, que tendem a associar política à corrupção, como fazia, antes de 1964, o “udenismo”.

No entanto, as explicações mais comuns para a antipolítica não funcionam para o caso brasileiro. De maneira geral, se associa os movimentos do centro capitalista com a crise financeira de 2008, que teria aberto caminho para que os descontentes com a globalização finalmente se manifestassem. No Brasil, em contraste, a crise financeira de 2008 não teve tanto impacto, além de Bolsonaro ter sido eleito com um programa neoliberal, ao qual a globalização está ligada.

Nesse sentido, talvez se deva entender a “antipolítica” como manifestação de algo mais amplo e mais sério: a perda de legitimidade de variados sistemas políticos como um fenômeno mundial.

IHU – O que explica, em termos de análise sociopolítica, que um governo sem qualquer projeto e com realizações muito parcas continue no pleito com chance de vitória?

Bernardo Ricupero – Paradoxalmente, a falta de realizações do governo possibilita, em boa medida, que Bolsonaro tenha chances eleitorais ou, ao menos, obtenha uma votação expressiva em outubro. Como já chamaram a atenção outros analistas, ele pode assim manter seu discurso antiestablishment, sugerindo que a falta de realizações de seu governo é fruto da resistência do establishment. Isso é ainda mais paradoxal se levarmos em conta que passou a se aliar, durante a pandemia de Covid-19, com o “Centrão”, ou seja, com o próprio establishment político. Mesmo assim, parcela do seu eleitorado mais fiel, especialmente aquela identificada com o discurso antipolítico, parece ter aceitado a alegação do presidente que esta era a única forma de sobreviver politicamente.

De qualquer maneira, este quadro torna a eleição de 2022 mais complexa do que a de 2018. Fazem parte da coalizão de Bolsonaro não apenas segmentos identificados com a antipolítica, mas também políticos tradicionais, como Arthur Lira, Ciro Nogueira e Waldemar Costa Neto. Nesse sentido, a campanha do presidente já não se apoia quase exclusivamente na internet, mas assegurou um tempo considerável no horário gratuito do rádio e da TV, cerca de 2 min e 50 s por cada bloco, menos apenas do que a candidatura Lula.

Mais importante, o contexto da atual campanha não é o mesmo de 2018. Há quatro anos, os protestos que vinham agitando o Brasil desde 2013 e a Operação Lava Jato criaram um ambiente favorável à antipolítica. Já num quadro de alta da inflação e desemprego em torno de 10% não há muita dúvida que a economia será decisiva para o resultado das próximas eleições. As benesses da chamada PEC Kamikaze talvez sejam capazes de minorar um pouco o mal-estar social, mas dificilmente serão capazes de reeleger Bolsonaro.

IHU – A imprensa costuma chamar o espectro político que dá sustentação ao atual governo de “Centrão”. Contudo, se observarmos em perspectiva histórica, os políticos e herdeiros políticos que compreendem esses congressistas são originários da Arena, partido da situação na ditadura. Não seria mais adequado chamá-los de “Direitão” ou “Arenão”? O que explica essa posição pusilânime de parte dos articulistas políticos?

Bernardo Ricupero – A origem do termo “Centrão” está na Constituinte (1986/1988). Fazia parte dele um grupo de parlamentares conservadores do PFL (um dos antepassados do atual União Brasil), do PMDB, do PDS (antepassado do atual PP), PTB e PL. De maneira ampla, se colocavam contra a pauta mais progressista da Constituinte e apoiavam o então presidente Sarney. Nesse sentido, o Centrão pode ser considerado, ironicamente, um resquício da Nova República, já que há certa continuidade – ou talvez seja melhor dizer, permanência – entre suas práticas de mais de 35 anos e o atual Centrão. Lembro, por exemplo, de uma do deputado ruralista Roberto Cardoso Alves (PMDB), o Robertão, que se tornou célebre – “é dando que se recebe” –, que bem que poderia ser proferida por Arthur Lira.

Você tem razão que boa parte dos assim chamados expoentes do Centrão vieram da Arena. Mas não todos; o próprio Robertão era do PMDB, partido cuja memória da resistência à ditadura ainda estava fresca no final da década de 1980. Talvez por conta de um fenômeno ao qual já fiz alusão anteriormente – como, nos primeiros anos da redemocratização, havia uma repulsa quase instintiva com o que era identificado com a ditadura, em especial, a “direita” – o grupo preferiu se chamar “Centrão” e não “Direitão”.

De qualquer maneira, acho que o termo expressa um traço importante da política brasileira: de um grupo de parlamentares, mais ou menos amorfo, que está sempre disposto a apoiar o governo, qualquer que ele seja.

IHU – Como o senhor vê a apatia das chamadas “instituições” diante do vasto cardápio de crimes de responsabilidade já cometidos pelo atual presidente da república?

Bernardo Ricupero – Este talvez seja um dos sinais mais sérios dos males brasileiros que os quatro anos de Bolsonaro explicitam. É verdade que é preciso qualificar o comportamento das instituições e de seus representantes. Há aqueles que foram nomeados para que não fizessem nada, caso do atual procurador-geral da República. Há também aqueles que estão no seu cargo para tirar benefícios pessoais para si e para o grupo ao qual servem, caso do atual presidente da Câmara dos Deputados. Há igualmente os ambíguos, como o atual presidente do Senado e alguns ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Finalmente, há alguns ministros do STF que têm enfrentado os evidentes abusos do presidente.

No entanto, não resta dúvida que é um escândalo Bolsonaro chegar ao fim de seu mandato, principalmente se levarmos em conta como foi gerida a pandemia de Covid-19, com seus mais de 670 mil mortos.

IHU – O senhor acredita que haja qualquer possibilidade de se frear a “PEC Kamikaze” por ser interpretada como inconstitucional e que custará R$ 41 bilhões aos cofres públicos?

Bernardo Ricupero – Não me parece que o Poder Judiciário, depois de todos os atritos que teve com Bolsonaro, estará disposto a enfrentá-lo no que diz respeito à PEC Kamikaze. A decretação do Estado de Emergência é uma espécie de confissão da ilegalidade que está por trás dessa iniciativa, realizada em pleno período eleitoral. Por outro lado, derrubar a PEC iria de encontro à narrativa de Bolsonaro a respeito da perseguição que sofreria por parte do establishment, além de se tratar de uma medida com amplo apelo popular.

IHU – Por que uma eventual vitória de outro candidato ao pleito, que não seja do atual presidente, não significa um retorno à normalidade?

Bernardo Ricupero – A derrota de Bolsonaro nas urnas não significa a derrota do bolsonarismo, já que para além do personagem – medíocre e grotesco – o movimento que expressa está fortemente ancorado na história e na sociedade brasileira. Consequentemente, a vitória de Lula – não vejo possibilidade de Terceira Via – não representaria o retorno à suposta normalidade que vigorou a partir da redemocratização. Nesse período, uma espécie de “otimismo ingênuo” nos convenceu que tínhamos uma democracia política consolidada e que caminhávamos, mesmo que aos trancos e barrancos, para mais igualdade social.

A vitória de Bolsonaro, em 2018, foi uma surpresa, mas o que ela expressa não é a exceção, mas a linha dominante da nossa história. Um país que foi colônia e, como tal, estava voltado para necessidades estranhas à maior parte da sua população que, não por acaso, veio para aqui forçada, como escravos.

Estes são fatos conhecidos da nossa história e sociedade, destacados por “intérpretes do Brasil”, como Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes. Mas preferimos não os ver, acreditando que o país rumava para outro caminho. A eleição de Bolsonaro mostrou a que ponto estávamos enganados.

IHU – Para finalizar, como o senhor vê a possibilidade de concretização de um golpe anunciado há muito tempo? É possível acreditar que as instituições democráticas do país terão forças suficientes para fazer valer o resultado das eleições?

Bernardo Ricupero – A esta altura, acredito que não há muita dúvida de que Bolsonaro tentará dar um golpe. Também parece que ele dispõe de certo apoio nas Forças Armadas. Mesmo um militar que parecia ser um “legalista”, Paulo Sérgio de Oliveira, revelou-se, como ministro da Defesa, um defensor das críticas evidentemente infundadas às urnas eletrônicas. Não sei, porém, quando e como será este golpe. De qualquer maneira, também não sei se Bolsonaro terá força para dar o golpe. O contexto internacional é desfavorável a tal solução. Internamente, seria importante Lula ganhar no 1º turno ou ficar claro que Bolsonaro chega às eleições muito fraco.

Foto: José Luiz Bernardes Ribeiro | Wikimedia Commons

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